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Reinventar os sindicatos é incorporar novos repertórios, mas olhando para suas origens. Entrevista especial com José Eymard Logu


20/10/2021
 

Não é de hoje que os sindicatos vivem, no Brasil e em todo o mundo, um momento de encruzilhada. O questionamento, no caso, vai além de aspectos como a posição em negociações coletivas e a abrangência de sua atuação: o que se questiona é a própria existência das entidades sindicais, como se fossem um conceito ‘indesejável’ ou ‘ultrapassado’ em uma sociedade que, cada vez mais, se submete à lógica economicista e às exigências supostamente incontornáveis do mercado. A pergunta, então, é feita de forma cada vez mais explícita: para que servem, no fim das contas, os sindicatos? 

Na visão de José Eymard Loguercio, especialista em Direito do Trabalho e sócio da LBS Advogados, a resposta a essa questão passa, ao mesmo tempo, por um esforço de resgate e uma disposição aberta à renovação. Profundamente interessado na questão sindical, Eymard traça, em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, um panorama das pressões e desafios impostos ao sindicalismo na atualidade, sugerindo caminhos que permitam à representação dos trabalhadores andar para a frente – um processo que, em certos aspectos, exige uma olhada para trás, retomando princípios que, em novos formatos, podem reconectar essas entidades com as novas situações de trabalho e com sua própria história.
 
DMT – Um dos discursos mais comuns, dentro do processo de desmonte da legislação trabalhista, é o que retrata os sindicatos como uma coisa atrasada, anacrônica, que não tem mais função. Quais são, na sua visão, os principais elementos constituintes desse discurso? E quais são as particularidades que envolvem, aqui no Brasil, a disseminação desse argumento contrário à existência dos sindicatos?
 
José Eymard Loguercio – O neoliberalismo, para quem o pensa a partir de uma vertente mais economicista, ou de algumas correntes marxistas ou pós-marxistas, é compreendido como uma consequência das alterações do capitalismo. Essa compreensão também é importante, mas ele não se reduz a isso. Alguns estudos europeus já na década de 1970 ou um pouco depois, a partir do (Michel) Foucault, já vêm trabalhando a ideia de que, para além de uma abordagem econômica ou economicista do neoliberalismo, há uma racionalidade e uma subjetivação que vão sendo constituídas. E acho que isso vai ficando mais concreto para a gente na medida em que as mudanças de comportamento das pessoas vão acontecendo no tempo, junto com as próprias mudanças de estrutura de reprodução do capital. Então, se nós pegarmos autores europeus como (Christian) Laval e (Pierre) Dardot, eles vão chamar a atenção sobre como se criou uma nova racionalidade a partir do neoliberalismo, de como há uma subjetivação a partir de uma lógica concorrencial. A novidade que haveria está no fato de que, mesmo no campo do liberalismo clássico, havia um espaço para que os sindicatos atuassem no sistema de regulação e até mesmo de concorrência, em um processo de mediação de direitos. E o que esses autores, mais recentemente, vão observar? Que a disputa de regulação vai se dar em todos os espaços, e vai jogar tudo para a lógica de mercado. O que significa isso? Que toda a lógica de direitos acaba sendo precedida por uma lógica de mercado. Com o que você não tem mais, ou supostamente não precisa mais de uma mediação sindical, por exemplo. Nesse sentido, o sindicato ‘atrapalha’, não tem a função clássica de pressionar por salários e determinados direitos que compõem a base social.
 
Isso vai fazer com que as empresas, por exemplo, mudem a sua forma de distribuição de lucro e de capital. Você interfere nos sistemas de regulação, no Brasil e no mundo todo, para que uma parte do próprio lucro seja repassada para os acionistas, e parte dos trabalhadores acabam sendo acionistas da própria empresa. Eles passam a ter a maior parte da remuneração não ancorada em salário fixo, mas em resultados, e isso faz com que sejam deslocados para fora da relação mediada pelo sindicato. E então você tem os outros, os trabalhadores para os quais a lógica de mercado diz: ‘ser empregado é uma coisa que te aprisiona, que te deixa dependente de alguém, é melhor que você seja um empreendedor, que tenha liberdade de contratar e negociar’. Esse discurso quer nos fazer crer que esses trabalhadores não precisam de sindicato, porque eles negociam diretamente com a plataforma, ou porque negociam seus contratos com maior liberdade, porque eles trabalham a hora que quiserem e por aí vai.
 
Quem sobra para o sindicato? Aqueles trabalhadores clássicos de assalariamento. Há estudos que demonstram claramente que, muito antes da reforma, já se tinha um nível elevado de precarização por conta de contratos que não são propriamente típicos de assalariamento, e essas pessoas também não estavam representadas pelos sindicatos. Então, se olharmos só para esse mundo regular do assalariamento, as entidades sindicais passam a representar um percentual muito pequeno de trabalhadores. Os terceirizados já saíram dessa lógica de representação, esses contratos atípicos também não estão incluídos na representação, os altos empregados não estão, e aí vem a pergunta: para que servem os sindicatos?
 
DMT – Na lógica neoliberal, só para ‘atrapalhar’.
 
José Eymard Loguercio – Sim, só para atrapalhar, assim como todo o direito trabalhista também serviria apenas para atrapalhar. Porque a lógica de direitos estaria condicionada a uma regra de mercado, como um custo absorvido pelo empregador; portanto, quanto menos travas ele tiver, menos mecanismos de pressão ele sofrer, mais liberdade ele terá para fixar os preços com o menor custo de mão de obra possível. Acho que é uma questão que a gente precisa aprofundar nas análises, até para saber como interferir de forma mais concreta na ação sindical, mas acho que vai sendo imposta uma construção coletiva de que aquelas pessoas que ficaram naquele campo de atuação clássico da relação de emprego são privilegiados – não mais um grupo que precisa de proteção, mas um grupo de privilegiados, que concorre com os que estão fora. Voltamos a uma questão de concorrência: os que estão fora do mercado de trabalho concorrem com os que estão dentro. E uma consequência desse cenário é a consolidação de uma ideia de que é melhor que o trabalhador tenha alguns direitos do que não ter nenhum.
 
DMT – Como se os direitos fossem um recurso finito?
 
José Eymard Loguercio – Ou como se, antes do direito, houvesse a lógica econômica. Quanto custa esse direito? Naquele julgamento no Supremo Tribunal Federal que discutiu o imposto sindical (em 2018), o ministro (José Roberto) Barroso diz, a certa altura do seu voto, que os sindicatos devem ser livres para concorrer na disputa por associados. Isso é trabalhar com a lógica de mercado e de concorrência como pressuposto do Direito. A função do sindicato não é concorrer no mercado de consumidores de direito: o sindicato organiza os trabalhadores, e acho que é isso que dá o sentido de futuro e de presente do protagonismo dos sindicatos, porque é que ele organiza esses trabalhadores independente da situação jurídica que eles tenham com o fornecedor de serviços, ou com o empregador, ou com aquele que detém os meios de produção.
 
O sindicato só tem duas alternativas: ou ele vai ficar servindo exclusivamente aos assalariados, e vai se adequar a essa lógica de concorrência entre o melhor e o pior, ou ele vai se abrir para representar trabalhadores independente da relação jurídica que eles tenham com quem está fornecendo algum tipo de trabalho, seja assalariado ou não. O sindicato precisa continuar representando aqueles que estão no campo do assalariamento tradicional, mas isso não é suficiente para você ter uma sociedade de trabalho com trabalho decente, que é o conceito que a OIT elabora. É um desafio grande, porque os sindicatos estão acostumados a lidar com os assalariados – e o inverso também, ou seja, aquele que sai da relação de emprego sente como se despregando do mundo do trabalho, o que não é verdade. Você se reconhece como qualquer outra coisa, menos como trabalhador.
 
Ao contrário daqueles que entendem que há uma oposição entre o sindicato e o trabalho não assalariado, penso que há tudo a ver quando você compreende que, no fundo, o que identifica a possibilidade de organização sindical não é a forma jurídica da relação estabelecida, mas sim o quanto aquela pessoa é dependente do trabalho dela, e exclusivamente do trabalho dela, para a sua vida. E que, portanto, ela precisa de um sistema de proteção, ela precisa de uma aposentadoria no futuro, ela precisa de previsibilidade remuneratória porque ela tem contas para pagar. Nós estamos em um outro momento de disputa: do mesmo modo que houve a mudança de sistemas de servidão para o capitalismo industrial, e da escravidão para o capitalismo assalariado, nós estamos em meio a uma outra mudança. Vai levar algum tempo para que as pessoas compreendam a si mesmas nessa mudança, como levou no passado, mas elas acabarão compreendendo que são, antes de tudo, trabalhadoras e não empreendedoras delas mesmas.
 
DMT – Sabemos bem como a conjuntura brasileira é refratária para entidades representativas da classe trabalhadora. Em resposta a essa conjuntura, se ergue a ideia de que é preciso uma reinvenção dos sindicatos. Queria, então, propor uma provocação. Devemos, de fato, partir do princípio de que a reinvenção é o ponto de partida para o enfrentamento da conjuntura, ou talvez seja um pouco o contrário, enfrentar a conjuntura é que nos mostraria o caminho para a reinvenção?
 
José Eymard Loguercio – Boa pergunta, e boa provocação. Quando a gente diz que os sindicatos precisam se reinventar, é como se eles precisassem se transformar em algo que eles não são, e ninguém se reinventa se não for a partir da sua própria origem. O que tornou o sindicato relevante foi a compreensão de que havia uma exploração por meio da relação de trabalho, e que era necessário um ator coletivo capaz de organizar essas pessoas para que elas entrem no jogo com a capacidade de disputar e conquistar direitos. Ninguém inventou os sindicatos para que representassem exclusivamente assalariados e empregados: eles representavam essas pessoas porque essa foi a dinâmica inicial do capitalismo industrial. Então, o reinventar é, de certa forma, olhar para a sua origem e perguntar a si mesmo onde, no mundo atual, há a exigência de que as pessoas se organizem coletivamente e busquem seus direitos – ainda dentro da relação de emprego clássica, porque ela vai permanecer e é uma permanência importante, mas também para além dele. E eu acho que esse ‘para além dele’ é a nossa dificuldade.
 
O desafio da reinvenção, é que é preciso voltar para a sua origem, mas a origem não está mais naquele lugar. A representação no local de trabalho, por exemplo, é um referencial importante nas relações coletivas, mas qual é o seu local de trabalho hoje? Para o trabalhador em teletrabalho, o seu local de trabalho é a sua casa. Isso exige que o sindicato pense para além das formas clássicas. Você se reinventa a partir de uma história, e essa história continua praticamente a mesma: as formas de se organizar é que vão se modificando. Isso é uma mudança brutal para os sindicatos porque, se você pegar alguns anos atrás, quando teve início a terceirização, os sindicatos discutiam se deveriam ou não incorporar os terceirizados na sua base de representação. Porque os que estavam contra a terceirização entendiam que aí estava uma contradição: se eles colocassem os terceirizados para dentro de sua base de representação, eles estariam, de certo modo, reconhecendo a legitimidade da terceirização. Isso atrasou a aproximação do sindicato com essa massa de terceirizados. O que os sindicatos mais recentemente fizeram, e isso já foi uma reinvenção, foi reconhecer que esses trabalhadores precisam ser representados, que essa representação pode fazer com que eles se compreendam como sujeitos de direitos e que, a partir disso, lutem por esses direitos junto conosco.
 
Estamos discutindo formas de trabalho novas, que não estão na relação clássica de emprego, com pessoas que não se entendem como trabalhadoras e que enxergam o sindicato como um ambiente hostil a elas. E aí a reinvenção é um pouco dos dois lados: de quem está fora do mercado formal, e não se reconhece como trabalhador, e também dos sindicatos.
 
DMT – Quais são, em sua visão, as pressões mais intensas que hoje incidem sobre os sindicatos brasileiros?
 
José Eymard Loguercio – Acho que há três movimentos recentes que desafiam o sindicato. Um, é como ele alcança trabalhadores que não estão em um modelo de assalariamento clássico. Disso já falamos um pouco. Segundo, como ele alcança trabalhadores que, mesmo estando em uma relação clássica, vão exercer modalidades de trabalho deslocalizadas, seja no teletrabalho, seja em locais geográficos diferentes, até países diferentes. Você pega, por exemplo, o Sindicato dos Bancários de Porto Alegre: uma pessoa pode, por exemplo, trabalhar para uma instituição financeira que está no município (de Porto Alegre) estando em sua casa no interior do estado, ou em outro estado. A deslocalização, mesmo na relação clássica de emprego, é um desafio para os sindicatos, tanto para dentro quanto para fora. E o terceiro está relacionado à dinâmica das negociações. E aí talvez esteja o grande desafio de fato: os sindicatos compreenderem que vão além dos espaços geográficos em que eles atuam.
 
Outro desafio é o da renovação sindical. Os jovens têm entrado no mercado de trabalho formal muito tarde, até pela falta de emprego, e em geral não se interessam pela militância sindical. Começam a despertar mais recentemente, e talvez a tecnologia ajude nesse despertar, porque é uma geração mais familiarizada com a tecnologia. Essa linguagem sindical, que também se renova com a tecnologia, pode começar a sensibilizar outros e outras trabalhadoras para essas pautas.
 
DMT – Aproveitando que o senhor tocou nesse assunto: de que modo esses desafios são influenciados pela novas tecnologias? Quero dizer, quais são os efeitos (sejam positivos ou negativos) que a escalada da tecnologia aplicado ao mundo do trabalho causa nisso tudo que estamos discutindo?
 
José Eymard Loguercio – A tecnologia poderá ser tanto uma inimiga quanto uma parceira, nesse caso. E eu acho que, durante a pandemia, certos sindicatos despertaram para isso. Por exemplo, já surgiram alguns aplicativos, mantidos por entidades sindicais, que colocam à disposição dos usuários a avaliação de determinados serviços, por exemplo, hotéis. Eu posso consultar se aquele hotel cumpre a legislação trabalhista, qual o grau de litigiosidade que aquele hotel tem e, como consumidor, posso escolher não ir para aquele hotel porque ele tem uma baixa taxa de cumprimento de legislação trabalhista.
 
Acho que, quando se fala na reinvenção do sindicato, isso passa pela disputa tecnológica, também. Por exemplo: assembleia digital. Era impossível fazer antes? Não, não era: apenas não se fazia. Com a pandemia, essa virou a única opção – e muitos sindicatos relatam uma participação muito maior, uma proximidade bem maior com as pessoas.
 
A Espanha elaborou, recentemente, uma legislação bastante inovadora no que se refere aos trabalhos em plataforma, que reconhece o algoritmo como um dado de negociação, um elemento cuja informação faz parte das obrigações dos empregadores para com os sindicatos. Isso é, de certo modo, uma revolução, porque, no que se refere a plataformas ligadas ao setor de transporte individual aqui no Brasil, como o Uber, o Judiciário não reconhece a possibilidade de você auditar o algoritmo, que dirá de ser informado a respeito dele. Então, quando a Espanha reconhece a possibilidade de disputar como o algoritmo trabalha, isso abre caminho para que outras legislações compreendam o algoritmo como uma forma de subordinação.
 
DMT – Dentro disso, me ocorre perguntar a respeito da atuação do STF, do TST e dos órgãos de Justiça em geral nesse cenário que estamos debatendo. Porque é sabido que o Judiciário teve papel importante no desmonte de direitos trabalhistas e no enfraquecimento de sindicatos, aqui no Brasil e em vários outros lugares.
 
José Eymard Loguercio – Acho que esse tema é da maior importância e, ao mesmo tempo, extremamente complexo. Como eu falei lá atrás, há uma pressão de disputa, no mundo todo, em torno das alterações no mundo do trabalho regulado. Em países de perfil constitucional parecido com o Brasil, como em parte dos países da Europa, que reconhecem o estado democrático de direito como eixo de irradiação de direitos, as alterações começaram lá atrás, em 2006 ou 2008. Você tem um ciclo de alterações legislativas na França, na Itália, em Portugal que vai até 2012, mais ou menos, e que é muito forte. No Brasil, essa alteração ativa não vinha ocorrendo. Quem você tinha como protagonista até antes da reforma trabalhista, na disputa de desregulação do Brasil? O Supremo Tribunal Federal.
 
Se você pegar a jurisprudência do Supremo, começando de 2008 mais ou menos, você tem um crescendo de decisões na esfera trabalhista e sindical que adota, por meio da maioria dos votos, uma desregulação da relação de emprego, e emblematicamente na questão da terceirização. Nessa decisão, em especial, se parte do pressuposto de que a empresa tem a liberdade de se organizar da forma que melhor entender, para que ela extraia o melhor resultado econômico possível a partir de sua atividade fundamental – uma decisão que se afasta do eixo fundamental da Constituição que tenta promover um equilíbrio entre a liberdade econômica e o trabalho humano. Ali, a liberdade econômica passa a ser um pressuposto, algo anterior, como se o mercado fosse antecedente aos direitos. A fiscalidade condiciona o que o Estado pode pagar, o limite do orçamento condiciona o atendimento das necessidades básicas da população, e não o inverso. Essa é uma lógica tipicamente neoliberal.
 
DMT – E então temos a dita reforma trabalhista de 2017.
 
José Eymard Loguercio – A reforma de 2017 tenta consolidar em regra inscrita o que já vinha sendo reinterpretado pelo Supremo, e isso é um pouco diferente do que vinha acontecendo em outros países. A Corte Constitucional na Espanha, as cortes na Inglaterra, na França e na Itália foram mais, digamos, garantidoras desse equilíbrio entre liberdade econômica e trabalho humano do que no Brasil. O limite disso, acho, é que esses países todos começam a rever suas reformas. Vamos conceder, em nome do argumento, que foi algo de boa fé, que era necessário fazer a experiência de desregular em algum momento etc: com o passar dos anos, essas democracias começam a compreender que a consequência não foi o bem-estar que se esperava. Alguns desses países começam a rever, e com muita dificuldade em decorrência do ambiente político que estamos vivendo no mundo, a lógica das reformas que foram implementadas naquele período. Mesmo nos Estados Unidos, o presidente Biden encaminhou ao Congresso uma proposta de legislação sindical de caráter nacional, o que é uma enorme novidade para os EUA. Esses movimentos, e respeitadas as diferenças culturais e econômicas em disputa, são indicativos claros de que se tomou o rumo errado e se compreende que, em algum momento, é preciso corrigir.
 
DMT – O senhor acredita que o Judiciário no Brasil está a caminho dessa percepção? Ou ainda nos falta algum caminho?
 
José Eymard Loguercio – No discurso que o ministro Barroso (do STF), muito corretamente, fez como presidente do TST sobre a atuação do Presidente da República em relação ao sistema eleitoral brasileiro, a certa altura ele volta a usar uma lógica econômica para chamar a atenção das pessoas. Ele diz que a ‘marca Brasil’ perde o seu valor, aqui e lá fora. Não é só o dólar que se desvaloriza, a bolsa que cai: é a marca que perde seu valor. Esse é um exemplo típico de uma lógica econômica que invade uma lógica política. O que ela não percebe – e a minha esperança é que um dia se perceba – é que esta lógica econômica faz com que os pilares da democracia sejam erodidos. Quando você vai para a lógica de mercado, a política também entra em uma disputa que é concorrencial, e não de legitimidade. É preciso que se compreenda que o desprestígio dos direitos sociais e econômicos afeta o pilar dos direitos civis e políticos. Por muito tempo, o STF usou duas lógicas distintas, separando esses direitos em universos decisórios diferentes, mas não percebeu que, ao usar a lógica neoliberal explícita para os direitos sociais, ele também está contribuindo para o desprestígio da democracia.
 
DMT – Pensar o mundo a partir de um olhar progressista passa, em maior ou menor grau, pela capacidade de sonhar, de visualizar um mundo além. Até que ponto o sindicato é, ou pode ser, um espaço para sonhar? Como usar a força e a capacidade de agregação dos sindicatos não apenas de forma reativa, enfrentando retrocessos, mas para propor um outro mundo, algo além das fronteiras do mundo tal como está posto?
 
José Eymard Loguercio – Sim, você tem razão. A resistência é muito importante, sobretudo quando você tem um avanço contra conquistas de gerações passadas. Mas ela é insuficiente para atrair as pessoas para o presente e para o futuro. Os sindicatos sempre foram também marcados por uma ideia de um mundo melhor mais à frente e, se você não enxerga a perspectiva de um mundo melhor, você não se mobiliza por ele. Uma das coisas que também querem nos fazer crer é que não existe trabalho para todo mundo, a robótica elimina postos de trabalho e que o desemprego é, até certo ponto, uma situação que deve ser tolerada. Acho que isso é um gancho para a gente pensar o presente e o futuro, a partir de um esforço para desacreditar essa ideia: se não há trabalho para todo mundo, que espécie de sociedade teremos no futuro? Penso que o que precisa ser modificado é o conceito do que entendemos por trabalho, o que valorizamos como trabalho. Por exemplo, o que chamamos de trabalho de cuidados: em uma sociedade que envelhece, esse trabalho em geral é feito pelas famílias, mas é trabalho, e não é remunerado. Esse trabalho todo que está fora do âmbito do assalariamento clássico: ele é trabalho, só não tem as mesmas características protetivas, e precisamos de características protetivas para ele.
 
Há experiências recentes, muitas que foram possíveis durante a pandemia, de solidariedades que reelaboram as práticas coletivas incorporando temas como classe, gênero e raça, para além das fronteiras das “categorias profissionais”, alcançando o modo e o local de vida das pessoas. Ou seja, uma das questões que aparece forte para buscar esse novo lugar do sindicalismo nesse mundo complexo, é o sair do espaço da produção para o espaço da vida.
 
Eu acho que essa demanda por um novo mundo também vem muito fortemente dos jovens, e tudo isso tem a ver com essa busca dos sindicatos de conscientizar além dos seus círculos atuais. Essa juventude quer, sim, um mundo melhor do que este em que vivemos hoje, quer uma sociedade diferente do que essa em que a gente vive atualmente. Então, acho que uma grande questão que surge nessa sua pergunta é lembrar que os sindicatos, quando ganham ascendência e protagonismo, estão inseridos em uma perspectiva de vida melhor para todo mundo: o novo sindicalismo, nas décadas de 1970 e 1980, reivindicava salário e também participação política, e esse foi o seu grande diferencial na época, porque ele mobilizou pessoas que queriam um mundo diferente. Nessa trilha, os sindicatos têm muito espaço. Se eles forem capazes de alargar seu campo de visão, aí serão capazes de fazer isso que você está propondo, de serem voz ativa na discussão em torno de um mundo melhor.
 
Fonte: DMT em Debate
 
 
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