Março de 2020. A pandemia estava se expandindo em todo o mundo. Começamos a experimentar, no Brasil, franca ascensão no número de infectados. As opções de tratamento mostravam-se muito restritas e muitas drogas testadas não confirmaram benefícios terapêuticos.
Ainda não tínhamos a exata noção da eficácia de corticoides e anticoagulantes nas diferentes fases do tratamento. O desfecho de casos graves, em muito, esteve diretamente relacionado com a estrutura hospitalar de apoio, muito desigual em nosso país.
As notícias sobre o avanço no desenvolvimento de vacinas eram incipientes. Causou grande reação o início do primeiro estudo clínico com a vacina da Moderna, anunciado em 16 de março de 2020, que foi seguido de vários projetos para teste de outras vacinas. Já era hora de se atentar para o tema.
Muitos duvidaram que as vacinas chegassem a tempo para enfrentar a pandemia. Afinal, o histórico não era favorável. Eram precisos em média sete anos para o desenvolvimento de uma nova vacina. Imagine, então, contra um agente infeccioso como o novo coronavírus, identificado em janeiro de 2020, tipo de vírus contra o qual não havia nenhum produto similar.
Mas os estudos avançaram a passos largos, não só com a vacina da Moderna, mas com várias outras. A OMS (Organização Mundial de Saúde) passou a organizar e atualizar, semanalmente, um portal listando todas as pesquisas em curso. Eram dezenas, que viraram centenas de produtos candidatos, muitos saindo das bancadas de laboratórios para ensaios clínicos em fases 1, 2 e 3.
Tornou-se claro que o investimento em pesquisa e inovação desafiaria a previsão pessimista e os prazos seriam abreviados, com a possível entrega de uma vacina até o fim de 2020.
Abordei este assunto na coluna desta Folha, no dia 9 de junho de 2020: a obtenção de uma vacina deveria ser tratada como questão estratégica para o país, em busca de acordos que nos garantissem acesso rápido, ao serem aprovadas para uso.
O Brasil desenvolveu e participou de diversos ensaios clínicos de fase 3 para a avaliação de vacinas. O primeiro foi o estudo com a Covishield, do laboratório AstraZeneca, que contou com a ajuda de doadores brasileiros.
O Instituto Butantan fez sua aposta: estabeleceu parceria com o laboratório Sinovac, importou a Coronavac, planejou e implementou um estudo com a participação de 16 centros de pesquisa somente em nosso país.
A Pfizer trouxe parte do seu estudo para o Brasil, com participação de dois centros de pesquisa, em São Paulo e Salvador. Depois foi a vez da Johnson & Johnson, que também conduziu, em vários centros brasileiros, parte de um grande estudo internacional.
As oportunidades estavam postas. Os laboratórios produtores buscavam parcerias que também ajudassem a consolidar seu desenvolvimento, inclusive com acordos antecipados de venda de doses.
Foi assim que atuaram vários países, dentre eles os Estados Unidos e a China. Investiram em parcerias de desenvolvimento, pois uma vacina teria, muito provavelmente, protagonismo na solução das mazelas provocadas pela pandemia de Covid-19.
Por aqui, infelizmente, não se seguiu o mesmo caminho, e o debate tornou-se demasiadamente politizado.
O Governo de São Paulo apostou fortemente na Coronavac através do Butantan, enquanto o Ministério da Saúde buscava acordo com a AstraZeneca para acesso e produção da Covishield, em parceria com a Fiocruz. Sobraram insinuações, de todos os lados, sobre qual seria a melhor opção. No entanto, a melhor resposta deveria ser uma só: “todas”.
A perda da oportunidade com a vacina da Pfizer é perturbadora. A constatação de que ofertas para estabelecermos acordos de cooperação para acesso à vacina foram desperdiçadas demonstra a falta da atenção dedicada a assunto tão crítico e ajuda a entender a escassez de doses no momento. Sabe-se lá quantas outras oportunidades foram perdidas.
O posicionamento de nossos representantes foi especialmente desprovido de visão estratégica. Demonstraram menosprezo à importância das vacinas, levantaram dúvidas infundadas sobre a segurança dos estudos e fizeram menções pejorativas ao voluntarismo em pesquisas clínicas. Além disso, ajudaram a retroceder avanços conquistados em décadas pelos programas de vacinação no Brasil.
Sobraram menções depreciativas à China, acusada de ter criado o vírus em laboratório e ter sido responsável pela pandemia de Covid-19. Podem ter estremecido acordos que envolvem produtos fabricados naquele país, um dos maiores produtores mundiais de vacinas.
Seria mais sábio se espelhar nos exemplos como os de Israel, Inglaterra, Estados Unidos e Chile. Todos anteviram que é preciso correr riscos para assegurar acesso às doses suficientes para imunizar a população e, como o tempo mostrou, ajudar a controlar a pandemia.
Estamos, infelizmente, pagando um preço alto demais por tantas decisões erradas.
Fonte: Folha de SP