A enfermeira Cristiane Lamarão, 43, está exausta. Na linha de frente de um pronto-socorro e de uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em Porto Velho, Rondônia, a profissional tem encarado a morte pela Covid diariamente.
A perda mais dura foi a de seu marido, o também enfermeiro Raimundo Lamarão, 51, que morreu em agosto infectado pelo vírus. Agora viúva, ela não tem como quem dividir os cuidados com os filhos de 17, 15 e cinco anos.
A história de Cristiane e Raimundo tornou-se comum aos profissionais de saúde do país, há mais de um ano nas trincheiras de uma guerra na qual já se contam quase 270 mil mortos. “Vi colegas morrendo. Chego a intubar até quatro pacientes num plantão. Perdi meu marido, estou com depressão”, enumera.
Dados do Ministério da Saúde apontam que pelo menos 484.081 desses profissionais haviam tido infecção pelo novo coronavírus confirmada até o dia 1° de março. Deles, 470 morreram. É 1,3 morte por dia, ou uma a cada 19 horas —e isso antes da semana mais mortífera da doença no Brasil.
O levantamento do Ministério da Saúde usa de duas bases de dados: SIM (Sistema de Informação de Mortalidade), que se abastece da declaração de óbito, e o Sivep-Gripe (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe), no qual o campo de ocupação não é de preenchimento obrigatório. Os dados de 2020 ainda podem sofrer alterações.
Levantamentos do CFM (Conselho Federal de Medicina) e do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), porém, indicam que os dados do Ministério Saúde podem estar subnotificados. Eles apontam a morte de 551 médicos e 646 enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem Ou seja: uma morte a cada sete horas e meia.
A pasta estima de que existam no país 6.649.307 trabalhadores que atuem no segmento da saúde. A taxa de infecção desses profissionais é de 7,3%, contra 5% da população em geral.
Entretanto, a taxa de letalidade (quantidade de pessoas que morrem em relação à quantidade de casos confirmados da doença) é menor.
Enquanto na população em geral esse índice ficam em 2,4%, entre os profissionais da saúde ele fica em 0,1%, se consideradosos dados do ministério, ou 0,3%, segundo os conselhos de classe.
Esses últimos números, porém, podem não retratar a realidade.
Fátima Marinho, médica epidemiologista e especialista sênior da Vital Strategies, ressalta que os dados devem ser analisados com cautela, porque a testagem entre os profissionais de saúde é maior, o que possibilita o tratamento mais ágil e reduz a letalidade.
“A letalidade na população está muito alta porque há poucos testes. Identificamos poucos casos leves e assintomáticos. Já a morte pela Covid é melhor diagnosticada. Com isso, a letalidade aumenta artificialmente. Na verdade esperamos uma letalidade de no máximo 1%."
Dados da Anistia Internacional mostram que 17 mil profissionais morreram em 2020 no mundo por causa da pandemia. Entretanto, a instituição deixou de comparar dados dos países porque cada um usa uma metodologia diferente. No Brasil, a instituição utiliza a base de dados do Cofen e do CFM.
Apesar de não separar mais as mortes por país, levantamento da Anistia Internacional publicado em setembro de 2020, quando o mundo havia registrado a morte de pelo menos 7.000 profissionais de saúde, mostrava o Brasil com 634 óbitos, a Índia com 537 mortes; África do Sul, 240; Estados Unidos, 1.077 e México, 1.320.
Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, diz que a morte de profissionais de saúde tem relação com a política adotada pelo poder público, na qual falta coordenação.
“A falta de enfrentamento unificado da pandemia, a má aplicação do orçamento da saúde destinado ao combate da Covid-19 e a falta de exemplo de autoridades brasileiras diante de inúmeras recomendações de segurança e proteção foram fatores determinantes para as mortes dos profissionais de saúde e demais pessoas vítimas da doença”, diz.
Viviane Camargo, coordenadora da Câmara Técnica de Atenção à Saúde do Cofen, considera o número de óbitos alto e diz que o Brasil lidera ess ranking. Ela atribui os números, além de à exposição direta ao vírus, a problemas com a infraestrutura para enfrentá-lo. O Cofen já recebeu mais de 9.000 denúncias de irregularidades.
Vice-presidente do CFM, Donizetti Dimer Giamberardino Filho afirma que os profissionais de saúde estão exaustos fisicamente e psicologicamente. Muitos estão tirando licença por problemas de saúde.
O Brasil enfrenta o seu pior momento desde o início da epidemia de Covid-19, com hospitais públicos e privados por todo o país registrando altas taxas de ocupação de UTIs e com recordes sucessivos de mortes pela doença registradas em 24 horas.
A situação se agravou com a falta de leitos, equipamentos de proteção, respiradores e medicamentos para intubação. “A adversidade faz com que o profissional corra mais risco. Quando há mais infraestrutura o problema é reduzido", diz Giamberdino Filho.
A pandemia afeta ainda qas famílias desses profissionais, alerta o psiquiatra e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Miguel Roberto Jorge.
“Os familiares estão ficando muito angustiados e com medo. A sobrecarga de trabalho na pandemia, nas condições que trabalham, acaba abrindo a possibilidade de exaustão, com impacto na saúde mental."
Muitos dos profissionais mortos são jovens, como Gillian Vitor da Silva Reis, 28, que atuou na linha de frente em hospitais em Salvador.
A família do médico é de Bandeirantes d’Oeste, distrito de Sud Mennucci, em São Paulo, estava apreensiva. A irmã, Giovana, 32, falava todos os dias com Gillian —ela é estudante de enfermagem. No dia 15 de janeiro, quando ele já estava internado, os médicos deixaram a família vê-lo, mas informaram que aquela poderia ser a última vez.
“Ele tinha um carinho enorme pelos pacientes, era muito querido, muitos o chamavam de doutor anjo. Ficamos sem chão após a sua morte”, diz ela.
O Ministério da Saúde afirmou que tem promovido esforços para tentar conter o avanço da pandemia e buscado a avaliação e a negociação de novas doses da vacina contra Covid-19 com a finalidade de regularizar o processo de distribuição e ampliar o alcance dos grupos prioritários.
Para os trabalhadores de saúde, foram encaminhadas até o momento 81% das doses necessárias para essa parcela da população.
Fonte: Folha de SP