Mulheres sofrem mais assédio moral e sexual no ambiente de trabalho do que os homens, de acordo com pesquisa do Instituto Patrícia Galvão obtida pelo G1: 40% delas dizem que já foram xingadas ou já ouviram gritos no trabalho, contra 13% dos homens que vivenciaram a mesma situação. Dentre os trabalhadores que tiveram seu trabalho excessivamente supervisionado, 40% também são mulheres e 16% são homens.
Com o objetivo de fomentar o debate sobre as situações de violência e assédio no ambiente de trabalho, a pesquisa, feita em parceria com o Instituto Locomotiva com apoio da Laudes Foundation, mapeou as percepções da população sobre a temática e as experiências de assédio e constrangimento vividas pelas mulheres no ambiente de trabalho.
A pesquisa também revelou que na percepção de 92% dos entrevistados, mulheres sofrem mais situações de constrangimento e assédio no ambiente de trabalho do que os homens.
Para Adriane Reis, coordenadora nacional de Promoção da Igualdade e Eliminação da Discriminação no Trabalho – Coordigualdade, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), apesar de ambos os sexos sofrerem assédio em empresas, a mulher ainda fica em uma situação pior porque o ambiente de trabalho reproduz valores de uma sociedade machista.
“Vivemos em uma sociedade machista, o que significa que há uma compreensão dentro do nosso imaginário social de que os homens estão em posição de superioridade em relação às mulheres, então eles têm acesso a cargos de maior poder e remuneração, enquanto as mulheres ficam em cargos de apoio e são vistas como pessoas que estão a serviço dos homens, muitas vezes como objetos até sexuais. Por acontecer isso dentro da nossa sociedade, há a repetição dessa prática dentro das empresas. Muitas vezes a gestão é tão autoritária e abusiva que você observa práticas de assédio moral em todo o conjunto de trabalhadores, mas ainda assim a mulher fica em situação pior porque há no imaginário social essa naturalização de a mulher fazer um trabalho inferior”, afirma.
Trabalhadoras e trabalhadores ouvidos pela pesquisa, sem serem identificados, contam sobre quando foram xingados nos empregos.
“Já levei gritos quando era mais jovem por superior, mas na época achei que era o certo para que eu aprendesse mais sobre o trabalho a ser realizado e hoje sei que não é o certo esta maneira de tratar o funcionário, por mais inexperiente que seja”, afirma entrevistada.
“Fui xingada várias vezes com predicativos de burra, débil mental, pouco profissional, amadora, estagiária de 15 anos que não sabe nada, mas como tinha que pagar aluguel não disse nem ‘a’ e nem ‘b’, porque com a minha idade, gordinha e mulher, não tenho muitas oportunidades de emprego”, afirma entrevistada.
A pesquisa foi feita online com homens e mulheres de todo o Brasil, com 18 ou mais anos de idade. Foram 1.500 entrevistas realizadas de 7 a 20 de outubro de 2020. A margem de erro é de 2,9 pontos percentuais para mais ou para menos.
O que é assédio?
Nem sempre as situações de constrangimentos e violência sofridas no ambiente de trabalho são reconhecidas claramente como assédio, seja moral ou sexual. Mas quando mostrado a trabalhadores exemplos de situações concretas, 76% das mulheres relatam já terem sofrido assédio, contra 68% dos homens.
De acordo com a pesquisa muitas vezes, o constrangimento é narrado como “bobagens” ou “brincadeirinhas”, e há um discurso que busca sua naturalização. A promotora Adriane Reis define os tipos de assédio.
“Tanto o assédio moral quanto o sexual são tipos de violências. O assédio moral se caracteriza por ser um conjunto de atos que pode atuar de forma sistemática ou um ato de extrema gravidade que gera um constrangimento ou uma humilhação a ponto de ferir direitos fundamentais da vítima. Ele é considerado uma violência psicológica, sem conotação sexual. Já o assédio sexual diz respeito a uma violência que tem por base um aspecto sexual.”
De acordo com Adriana, tanto o assédio moral quanto o sexual são um tipo de exercício de poder.
“O agressor tem por objetivo impor e sobrepor sua vontade à da vítima. O assédio moral ofende a dignidade humana. E o assédio sexual, além de ofender a dignidade humana, ofende a dignidade sexual da pessoa.”
A classe e a escolaridade das mulheres entrevistadas marcam diferenças significativas na forma de expressar a experiência do assédio. É o que revelou a etapa qualitativa da pesquisa, realizada de 28 de julho a 11 de agosto de 2020 com especialistas das áreas de direito trabalhistas, sindicatos, áreas de recursos humanos de empresas, ONU Mulheres e terceiro setor.
As mulheres entrevistadas tinham de 18 a 55 anos, pertenciam às classes A/ B e C/D, em condições de trabalho variadas entre autônomas, informais e formalizadas.
Enquanto mulheres das classes A e B conseguiam conceituar o assédio de maneira mais abstrata e ampla, mulheres das classes C e D precisavam recorrer a exemplos concretos para expressar o que entendem como assédio ou violência.
Maíra Saruê Machado, diretora de pesquisa do Instituto Locomotiva, disse em nota que os resultados indicam que as mulheres vivenciam uma série de situações de assédio e constrangimento no ambiente de trabalho que acabam sendo naturalizadas.
“Essas situações são tratadas como situações cotidianas, de pouca importância. É preciso falar sobre assédio no trabalho de forma ampla, inclusive nas empresas, coibindo essas situações e dando a devida relevância institucional ao tema, hoje tratado no âmbito individual, trazendo ainda mais sofrimento para as mulheres vítimas”.
Assédio sexual
O assédio sexual é mais frequente também entre mulheres: 39% das mulheres receberam de pessoas do sexo oposto convites para sair ou insinuações constrangedoras, contra 9% dos homens que receberam convites na mesma situação. Entre as mulheres, 12% delas já foram alvos de agressões sexuais, como estupro, contra 1% dos homens.
Há dois tipos de assédio sexual:
O assédio sexual por vantagem, em que o agressor oferece uma vantagem ou ameaça, oferecendo um prejuízo caso a vítima não consinta com a prática de determinados atos sexuais;
E o assédio sexual ambiental, que acontece de forma coletiva no ambiente de trabalho pela utilização de expressões sexuais, falas, piadas, imagens que também têm objetivo de constranger e humilhar o conjunto de trabalhadores.
“Um dia, estava no meu trabalho, um colega pegou na minha bunda e me chamou para sair. Eu fiquei muito nervosa porque ele era meu chefe”, afirma entrevistada.
Violência de gênero
“Trabalhava numa equipe com homens e observava que minha gestão priorizava e acreditava que os homens eram mais inteligentes e tinha dificuldades em reconhecer meu trabalho, que era reconhecido pelos colegas”, afirma entrevistada.
De acordo com a pesquisa, as situações de assédio são muitas vezes naturalizadas pelas mulheres, que nem sempre se percebem como vítimas de uma violência de gênero.
Entre trabalhadores, 36% das mulheres dizem já ter sofrido preconceito ou abuso no trabalho por serem mulheres, contra 15% dos homens na mesma situação.
Para Adriane, a origem de um ambiente de trabalho com mais assédio para mulheres é histórica e social.
“A gente tem uma sociedade patriarcal, em que se fundou dentro da nossa história as famílias patriarcais com a hierarquia entre homens e mulheres. As mulheres ficavam imbuídas de tarefas domésticas, ocultas e invisíveis e os homens ficavam com as tarefas públicas de melhor valorização. Essa divisão social do trabalho é repetida no ambiente das empresas. É por isso que nas reuniões as mulheres são mais interrompidas e acontecem coisas como apropriação de ideias delas por parte de homens, desqualificação das mulheres, convites inadequados de que, por exemplo, a mulher tem de servir cafezinho para todo mundo em uma reunião. A gente vê que é um fenômeno que tem um caráter social muito forte”, afirma.
Dentre os que sofreram constrangimento, preconceito ou discriminação, 27% são mulheres e 11% são homens. 22% das mulheres sofreram violência, abuso ou assédio (moral ou sexual), contra 12% dos homens.
“Única vez que fui constrangida foi quando relatei para a pessoa responsável de uma empresa que trabalhei sobre minha gestação. Simplesmente falaram que a empresa não tinha nada com isso. E fui demitida. No momento me senti um lixo, um nada”, afirma entrevistada.
Impunidade
As mulheres que vivenciaram situações de assédio relatam tristeza, ofensa, humilhação e raiva como sentimentos mais comuns. Apenas 16% delas disseram não ter se importado com a situação de assédio.
“Se passei por alguma situação contornei eu mesmo de forma tranquila, sem muito alarde, para não prejudicar eu e o autor”, afirma entrevistada.
A sensação de que denunciar o assédio sofrido não surtirá nenhum efeito ou o medo da demissão como consequência da denúncia acabam silenciando essas mulheres, de acordo com a pesquisa. Na maior parte dos casos, mesmo quando o caso foi denunciado, a vítima não soube o que houve com o agressor ou nada aconteceu.
Em apenas 28% dos casos, a vítima soube que agressor sofreu alguma consequência após denunciar o assédio;
11% não formalizaram a denúncia por terem sido assediadas pelo superior;
10% não formalizaram por terem visto o mesmo ocorrer outras vezes, sem solução;
Em apenas 34% dos casos denunciados, a empresa ouviu o relato e puniu o agressor;
Um quarto das mulheres que foram assediadas passaram a desconfiar das pessoas com quem trabalham e/ou não tiveram mais vontade de ir trabalhar;
21% saíram da empresa
Os grupos de entrevistadas da etapa qualitativa da pesquisa apontaram que as dificuldades de reação a respeito da situação não partem de um desconhecimento em relação ao que seria o assédio, nem de um desconhecimento de seus direitos, mas de uma desconfiança de que as instituições de proteção não funcionam.
Durante as entrevistas para a pesquisa, foram relatados dois casos de denúncia formal do assédio sexual sofrido. Porém, as vítimas não receberam acolhimento, nem tiveram qualquer encaminhamento do caso. Essa situação reforçou a percepção de desamparo compartilhada pela maioria.
O medo do desemprego também foi citado nas entrevistas da pesquisa. Nos grupos, o temor de perder o emprego em caso de denúncia foi mais explícito entre as trabalhadoras em regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) das classes AB.
A percepção mais comum, mesmo entre as trabalhadoras informais, é de que quem tem emprego certo tem mais medo de reagir do que quem não tem. De acordo com a pesquisa, para a autônoma é ruim perder o cliente, mas isso não significa necessariamente a perda da possibilidade de trabalhar e ter uma renda.
Por outro lado, algumas participantes das classes AB, com inserção em empresas de maior porte, reconhecem que algumas empresas vêm dando atenção a essas situações e adotando algumas iniciativas para coibir o assédio e facilitar a denúncia – como os serviços de disque-denúncia anônimo.
“É essencial no ambiente de trabalho ter uma medida de escuta, apoio e compreensão para as vítimas. O que não se pode pensar é que a pessoa que está denunciando vá sofrer represálias dentro da instituição. Quando acontece isso, a empresa passa o recado de que é normal o assédio lá dentro. As empresas têm de levar a sério as denúncias, têm de compreender que a violência e o assédio são muito disseminados e elas precisam ter uma atitude contrária, proativa. Mas o que acontece na prática é que as empresas só tomam atitude quando são questionadas”, afirma Adriana.
Fonte: G1