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O enfrentamento ao racismo precisa ser mais do que posts para aliviar a consciência


05/06/2020
 

“Recusamos esta branquitude ora desresponsabilizada, ora culpada, fundada na falsa ideia de ausência de cor e de raça, que goza privilégios como se direitos fossem. Que se orgulha de ter e ser o que nos foi expropriado. Que repousa em um lugar confortável de onde, então, pode ser generosa... Nosso orgulho é ter sobrevivido, a despeito do que nos foi —e tem sido— imposto. Nosso orgulho é possuir o que não nos foi dado nunca. É continuar. Nossos instrumentos para chegar até aqui precisam ser cada vez mais contados, pois podem traduzir a chave para outro futuro.” 

Começo esta coluna com esse trecho do marcante texto “A Era da Inocência Acabou, Já Foi Tarde”, escrito em 2001 por Jurema Werneck, referência para todas nós há muitos anos. A branquitude brasileira é tão racista que, diante dos protestos nos Estados Unidos pela morte de George Floyd, inaugura o debate racial. Descobriram o racismo, ironiza Silvio Almeida.
 
“Levou séculos para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a presença do racismo como fator estruturante das relações sociais no país. E isto só acontece agora, ao final do século 20 e início do século 21, como resultado de um trabalho longo, árduo. Denunciávamos o racismo, enquanto demonstrávamos a perversidade com que esse definia privilégios e exclusões, vidas e mortes; enquanto éramos nós mesmos nosso próprio testemunho, o restante da sociedade permanecia em silêncio”, afirma Werneck no poderoso texto.
 
É claro que é importante que a branquitude brasileira se mobilize contra o sistema que a beneficia.
 
Agora, mobilizar significa reconhecer o silenciamento com o qual as produções negras foram tratadas, o sufocamento das personalidades, opiniões. Ora, se vamos mesmo lutar contra o racismo, um sistema montado em cima da manutenção do privilégio racial branco, vamos discutir por que eu ligo a televisão e não tem uma programação, uma emissora predominantemente negra. Ora, é pedir muito em um país com 54% da população negra? Acho que não.
 
Mas aí vivemos num governo cujo projeto é o desmonte de políticas públicas. Que combate ao racismo é esse que busca se esquivar de responsabilidade do fundo do poço que esse país atingiu? Políticos que se vangloriam de sua desumanidade chegaram aonde chegaram sozinhos? Se hoje passamos vergonha no exterior, se políticas de precarização da população brasileira, negra e pobre em sua maioria estão em curso, há um sistema que privilegia a branquitude por trás disso.
 
Quanto tempo a branquitude dedicou em seus círculos financeiros energias, conspirações e dinheiro ao desmonte do Estado, de políticas públicas, quanto falaram mal do Bolsa Família, quanto tentaram barrar as cotas, quanto puseram em marcha reformas trabalhista e da Previdência que prejudicam a população negra? Aliás, há quanto tempo estão no ar programas policiais vespertinos que reproduzem
estereótipos da negritude e chancelam a violência policial?
 
Ou seja, é mesmo para combater o racismo, branquitude? Pois muito bem, só que a era da inocência acabou, já foi tarde.
 
O combate não será com uma única reportagem na TV, não será com 20 segundos de entrevista de uma pessoa negra a um jornal inteiro branco, não será com a contratação na empresa de uma única pessoa negra para dar conta de toda a coletividade e utilizá-la de escudo. Não será assim. Não funciona mais. A era da inocência acabou, já foi tarde.
 
Não será diminuindo o movimento negro brasileiro, pondo em comparação com uma imagem do movimento negro americano. Não será fetichizando imagens de corpos negros sempre em combate, mas debochando quando esses mesmos corpos saem dos lugares impostos, quando esses mesmos corpos demonstram alegria e prazer em ser o que são a despeito de todas as tentativas de humilhação.
 
Não será sem contar nossas histórias. Não será sem contar do quilombo dos Palmares, da Balaiada, da Conferência de Durban de 2001, que essa história será passada a limpo. Não será sem valorizar as estratégias de resistências dos povos de terreiro. A era da inocência acabou.
 
O enfrentamento ao racismo precisa ser mais do que hashtags e posts com a cor preta para aliviar a consciência. É preciso refletir, ceder, ter compromisso de fato.
 
Um levante está em curso e quem quiser ficar na frente que fique, será atropelado pela marcha da história. Quem quiser somar, que some, mas de modo profundo, pois não cabem mais estratégias caquéticas que destroem um Brasil por dia. A era da inocência acabou.
 
Já foi tarde.
 
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.
 
Fonte: Folha de SP
 
Foto: Linoca Souza/Folhapress
 
 
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