Para ele, o surto no Brasil está “apenas começando”. Nesta quarta-feira, também em entrevista à rede americana CNN, ex-ministro não descartou que o número diário de mortes no Brasil ultrapasse a marca dos mil casos.
Mandetta deixou o cargo no mês passado, depois de uma série de desentendimentos com o Planalto sobre a condução da resposta à pandemia. Agora, diz que o “tempo vai dizer” quem estava certo.
Para ele, o surto que já matou mais de 12 mil pessoas no Brasil vive ainda suas primeiras semanas. “Estamos no início”, apontou. Segundo ele, o pico pode já ter sido atingido em Manaus. Mas continua a crescer em outras capitais. “E no Sul ele ainda não começou”, alertou.
“A população não sabe para que lado ela vai”, lamentou, numa referência às ordens diferentes dadas por diferentes entidades políticas no país. “Eu dizia uma coisa e o presidente dizia outra”, admitiu.
Mas o ex-ministro também se preocupa com o posicionamento internacional do país. Nas últimas semanas, o chanceler Ernesto Araújo passou a criticar a China por conta da crise internacional. Além disso, passou a difundir em diferentes fóruns e textos a ideia de que existe um “plano comunista” para moldar a nova ordem internacional que vai se formar no momento pós-pandemia. Filhos do presidente e deputados aliados ao governo também usaram as redes sociais para atacar Pequim.
Mandetta não esconde que tem sérias dúvidas sobre os números divulgados pelos chineses e que acredita que a ciência irá desnudar os problemas que ocorreram no país asiático. Mas insiste que esse debate precisa ficar para depois. “A impressão que eu tenho é que, num local cheio de pólvora, o Itamaraty entra fumando”, disse.
“Não é o momento de uma briga”, afirmou. Mandetta conta como tentou se aproximar do governo chinês e fechar entendimentos com a participação também da Organização Panamericana de Saúde. “Se eu não tenho uma boa relação, vai ser difícil o abastecimento (de materiais de saúde)”, disse.
O ex-ministro aponta como até mesmo o governo de Donald Trump reduziu já em parte das críticas contra a China, pensando justamente em assegurar seu abastecimento. “Não é hora de apontar dedos. Primeiro precisamos enfrentar o coronavírus. Depois podemos lavar roupa suja”, insistiu.
Para ele, o Brasil já “paga o preço” de um comportamento agressivo contra Pequim. “Cadê as máscaras? Estamos perdendo enfermeiros”, disse. “Respiradores não chegam”, lamentou.
Futuro da OMS
Mandetta também deixou claro que a atual estrutura da OMS não permite à entidade ter os instrumentos necessários para lidar com crises como a atual. Segundo ele, a pandemia do coronavírus pode ser determinante para o futuro da instituição. “Vai ficar marcado”, afirmou. “A OMS não tem as ferramentas necessárias para arbitrar”, lamentou.
Segundo ele, a instituição teve um papel limitado em administrar o fornecimento de equipamentos e tampouco tem o poder de apresentar alternativas. “O modelo é falido”, disse.
O ex-ministro acredita que o Brasil perde com um sistema internacional enfraquecido. Mas lamenta a postura tomada pelo governo nas últimas semanas. “O Brasil está sem gente para pensar seu papel na saúde pública mundial. Se não sabemos nem se abre ou não cabeleireiro, como é que vamos saber nossa posição no mundo?”, questionou, numa alusão à decisão do governo federal de liberar a abertura desse setor.
Mandetta defendeu sua gestão no Ministério da Saúde e diz que, ao assumir a pasta, notou como o Brasil estava ausente do debate internacional depois do governo de Michel Temer e de uma aproximação dos governos de Lula e Dilma a países como Cuba. “O Brasil era carta fora do baralho. Eu comecei a reposicionar o Brasil. Mantivemos bons canais com EUA, Israel e Europa, mas também com a China, Alemanha, Reino Unido e Rússia”, disse. “Estávamos reposicionando o Brasil. Mas agora, como vai ser?”, questionou.
Mandetta não esconde que teme que o governo adote uma postura de alinhamento exagerado com os EUA e com um discurso de confrontação às entidades internacionais. “Meu medo é de o Brasil com um discurso anti-organizações (internacionais). Os EUA têm musculatura para se defender. Mas nós podemos ficar pelo caminho”, alertou.
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.
Fonte: Uol
(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)