Criada pela reforma trabalhista, a demissão por comum acordo vem aumentando e atingiu quase 17,8 mil contratos de trabalho em janeiro deste ano. Mas dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) indicam que algumas empresas estão coagindo funcionários que não desejam ser dispensados a aceitar este tipo de acordo como forma de pagar menos verbas rescisórias.
Levantamento feito pela Procuradoria-Geral do Trabalho a pedido do Valor aponta para pelo menos 16 procedimentos instaurados, quatro ações civis públicas, dois termos de ajustamento de conduta (TACs) e seis pareceres apresentados em processos judiciais referentes a fraudes ou possíveis fraudes em demissões por acordo.
Com medo da demora da Justiça, trabalhadores acabam se sujeitando à pressão da empresa. O novo texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não prevê punições para companhias que incorrerem na ilegalidade.
Demitida em fevereiro com pelo menos 20 pessoas do seu departamento, uma trabalhadora do setor têxtil que prefere não ter o nome divulgado conta que ela e todos os colegas foram constrangidos a aceitar demissões por acordo. Graduada em moda, a paulistana de 25 anos trabalhou na empresa por dois anos.
A companhia estava em recuperação judicial e enfrentava dificuldades, como atraso a fornecedores e cortes anteriores de funcionários, segundo ela. No dia da demissão coletiva que a incluiu, os trabalhadores escolhidos para ficar foram reunidos em uma sala e os demais tiveram de esperar, cientes de que seriam dispensados.
“Quando chegamos à sala, já sabendo que seríamos demitidos, ouvimos que o que a empresa estava propondo era um contrato de demissão por comum acordo e que era somente essa a opção”, relata. A trabalhadora conta que pensou em recorrer à Justiça, mas foi desencorajada pelos advogados que procurou. “A empresa tem muitas dívidas, e eu entraria numa fila quilométrica, eles disseram. Como precisava do dinheiro agora, tive que abrir mão.”
Ao aceitar a proposta da empresa, a ex-funcionária estima que deixou de receber cerca de metade do valor a que teria direito, caso tivesse sido demitida sem justa causa, incluindo aí o fato de que não terá acesso ao seguro-desemprego. “Vou ter que me virar, mas sou jovem, tenho mais chances. Fico mais preocupada com pessoas que tinham dez anos de empresa e foram demitidas comigo”, diz.
A Procuradoria-Geral do Trabalho acredita que os casos de irregularidade são ainda mais numerosos do que sugerem os dados. “Achamos que esses números estão muito subestimados”, alerta Vanessa Patriota, procuradora do MPT e vice-coordenadora da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret). Ela explica que as buscas no sistema da procuradoria são feitas através de um temário, ainda não adaptado à reforma trabalhista, por isso procedimentos podem ter ficado de fora do levantamento.
Além disso, diz Vanessa, o MPT atua apenas quando há lesão a direito coletivo, ou seja, quando há um número razoável de trabalhadores afetados. Casos individuais – que tendem a ser mais frequentes, já que irregularidades em demissões coletivas são mais facilmente detectáveis – vão à Justiça via ações particulares e acabam sendo mais difíceis de serem contabilizados.
Antes da reforma trabalhista, as possibilidades para demissão dos trabalhadores eram três. Quando é o empregado que pede demissão, ele não tem direito ao aviso prévio indenizado, ao saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), à multa de 40% sobre o saldo do FGTS nem acesso ao seguro-desemprego. Recebe apenas o saldo de salário, férias vencidas e proporcionais e o 13º salário proporcional aos meses trabalhados.
Quando é a empresa que escolhe demitir o empregado sem justa causa, ele tem direito ao aviso prévio (trabalhado ou indenizado), à multa de 40% sobre o saldo do FGTS e às guias para sacar o fundo de garantia e dar entrada no seguro-desemprego, além das verbas trabalhistas tradicionais (salário, férias, 13º). Na demissão por justa causa, o trabalhador só recebe o saldo de salário e férias vencidas.
Com a reforma trabalhista, uma nova possibilidade foi acrescentada à lista: a demissão por comum acordo (artigo 484-A da CLT). Nela, o empregado tem direito à metade do aviso prévio (15 dias), metade da multa sobre o saldo do FGTS (20%), ao saque de 80% do fundo de garantia e demais verbas trabalhistas, sem direito ao seguro-desemprego.
A ideia da reforma foi formalizar uma prática que já existia, explica a advogada trabalhista Ana Paula Smidt Lima, sócia do Custódio Lima Advogados Associados. “O acordo existia informalmente. Empregados e empregadores simulavam uma demissão sem justa causa, e os empregados, de forma ilegal, devolviam a multa de 40% à empresa”, diz.
A advogada avalia que a intenção da lei é boa, portanto, ao permitir uma forma para o funcionário acessar o FGTS, sem que a empresa tenha que arcar com a totalidade da multa, nos casos em que ambas as partes têm interesse em seguir caminhos separados. “Só que, infelizmente, o que temos visto é que algumas empresas estão usando desse expediente de uma forma incorreta, coagindo o empregado a aderir ao mútuo consentimento e pagando verbas rescisórias menores do que teriam que pagar.”
Ana Paula lembra que a coação é ilegal, mas que a legislação não estabelece punições específicas às empresas. Resta aos trabalhadores ir à Justiça em busca do devido ressarcimento, mas a reforma trabalhista também tem inibido esse recurso. “O trabalhador está com receio de entrar com a ação pois, com a reforma trabalhista, se ele perde, corre o risco de pagar as custas do processo ao Estado e também honorários de sucumbência aos advogados da parte contrária”, afirma.
Segundo dados da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, no acumulado de 12 meses até janeiro de 2019, a entrada de casos novos nas Varas do Trabalho somava 1,8 milhão, contra 2,5 milhões em 12 meses até janeiro de 2018, uma queda de 31%.
Na visão da especialista, abusos poderiam ter sido evitados caso tivesse sido incluído no artigo da CLT uma forma de verificação do mútuo acordo, por exemplo, com avaliação pelo sindicato do trabalhador. Mas, com a reforma, a homologação de demissões não precisa mais ser feita com aval de entidade sindical. “A reforma foi aprovada a toque de caixa e deixou vários pontos que deveriam ter sido melhor estruturados”, avalia Ana Paula.
Conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), compilados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as demissões por comum acordo somam 189,3 mil desde a entrada em vigor da reforma trabalhista, em novembro de 2017, até janeiro deste ano. Em relação ao total de desligamentos, o número ainda é pouco representativo, equivalente a 1% do total e a 4,6% dos desligamentos a pedido.
As ocupações mais sujeitas a esse tipo de acordo são vendedores, escriturários, trabalhadores de manutenção, vigilantes, motoristas de veículos, garçons, caixas, porteiros, alimentadores de linhas de produção e recepcionistas. Os dados mostram ainda que os acordos são mais comuns quanto maior o tempo de emprego e maior o salário do desligado, ou seja, entre os trabalhadores cujo custo da dispensa é maior.