O maior escândalo protagonizado por Bolsonaro neste carnaval de 2019 não está na sua postagem delirante e sim na edição da Medida Provisória nº 873/2019
por Márcia Semer
Nas redes sociais o assunto mais comentado é o (mau) comportamento presidencial e em particular a impostura de uma postagem grotesca que o Presidente enviou no seu twitter. Na postagem, o Presidente sustenta que, no Brasil, brincar no carnaval virou promiscuidade, porque a festa, especialmente a realizada pelos blocos de rua, virou aquilo – uma cena pornográfica e escatológica – que ele exibe sem censura.
Não digo que o assunto não mereça atenção, afinal, não é todo dia que um Presidente da República se excede tão negativamente, ofendendo e desprestigiando seu próprio povo e país, não havendo, em verdade, paralelo histórico de iniciativa desse tipo, nem mesmo de Donald Trump que, sabe-se, não prima pela elegância no uso das redes sociais.
Mas, o maior escândalo protagonizado pelo Presidente Jair Bolsonaro neste carnaval de 2019 não está na postagem delirante e sim na edição da Medida Provisória nº 873/2019.
Essa “lei”, publicada no dia 01 de março de 2019, sexta-feira de carnaval, com a pretensão aparentemente singela de “dispor sobre a contribuição sindical”, vem, com desassombrado despudor, regular como os Sindicatos podem ou não podem receber o pagamento voluntário das mensalidades dos seus filiados.
Extinto o imposto sindical na Reforma Trabalhista levada a efeito no governo Temer, o Estado promove ingerência, até aqui inexistente, no recebimento da contribuição espontânea dos sindicalizados. É um escândalo.
Sobre o assunto, alguém mais desavisado pode perguntar: mas os Sindicatos não recebiam imposto sindical que era regulado por lei? Por que agora estão reclamando de se regular por lei a contribuição sindical?
A resposta é simples: os dois institutos são coisas muito diferentes.
O imposto sindical era política pública de incentivo à organização sindical, não era uma contribuição cobrada dos filiados. O imposto sindical era valor descontado, pelo empregador, do salário dos empregados, por imposição legal e não por vontade consensuada, pactuada entre Sindicatos e seus filiados. O imposto sindical saía compulsoriamente da remuneração de todos os trabalhadores das diferentes categorias laborais e destinava-se, em percentuais previstos na CLT, aos sindicatos, federações, centrais sindicais, confederações e conta especial emprego e salário. Não tinha nada a ver com a relação filiados-sindicato. Dizia respeito a uma relação direta entre Estado e sindicatos, onde o Estado deliberadamente interferia para promover o incremento da capacidade de organização dos trabalhadores brasileiros. Fê-lo, aliás, por várias décadas, inclusive durante a ditadura militar. E nem era a única política pública de incentivo aos sindicatos.
O artigo 544 da CLT, introduzido pelo Decreto-lei 229/67 e em vigor, é outro exemplo de política pública de incentivo à sindicalização. Confere ao empregado sindicalizado uma série de preferências que vão desde o ingresso preferencial em empresa que explore serviço público, passando por acesso a loteamento rural ou urbano promovido pela União (minha casa, minha vida, por exemplo), até concessão de bolsa de estudo para si e para os filhos.
E, antes que algum desavisado venha falar bobagem, não se trata de jabuticabas brasileiras. Muitos países no mundo, inclusive os EUA – sim os EUA – desenvolveram políticas públicas de incentivo à organização sindical como forma de permitir algum equilíbrio na hora da negociação entre patrões e empregados e, assim, qualificar as condições de trabalho praticadas em seus territórios.
Daí que seria cômica se não fosse trágica tamanha ousadia essa do governo Bolsonaro de baixar medida provisória para regular a relação filiado-sindicato no que lhe é particularmente sensível, a captação dos recursos indispensáveis à sua existência.
Tamanha investida contra a livre organização sindical e, por consequência, contra a Constituição da República, ainda por medida provisória, não permite muitas dúvidas quanto à finalidade de asfixiar os Sindicatos às vésperas do início do debate sobre a questão previdenciária.
No que concerne à livre organização sindical é expressa a CF/88 – ainda em vigor – em seu artigo 8º: “É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: I. A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao poder público a interferência e a intervenção na organização sindical.”
O texto constitucional não poderia ser mais claro. A interferência do Poder Público, do Estado, para definir como se processa a relação dos Sindicatos com seus filiados quanto ao valor e forma de pagamento das contribuições, dentre outros temas, não tem qualquer razão de direito que a sustente. O filiado ou sindicalizado é o trabalhador que se associa espontaneamente ao Sindicato e, o Sindicato, como qualquer outra entidade associativa, deve regular em seus estatutos e regulamentos a forma de se relacionar com os associados. Não compete ao Estado e, mais que isso, é constitucionalmente vedado ao Estado interferir nessa relação, que tem existência especificamente autorizada na Constituição e, portanto, é lícita. Apenas e tão somente o registro sindical no órgão competente pode ser objeto de regulação estatal.
O artigo 8º da CF/88 tem nítida inspiração na Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1948, cujos artigos 3 e 4 são textuais em dispor que: (i) “as organizações de trabalhadores e empregadores terão o direito de elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão e a atividade dos mesmos e de formular seu programa de ação”, (ii) “as autoridades públicas deverão abster-se de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou entravar o seu exercício legal”. Embora o Brasil não seja signatário desse documento, transplantou-o sob esse particular aspecto da liberdade sindical para a própria Constituição, cuja interpretação pode e deve abeberar-se em seu conteúdo.
O escândalo, no entanto, não para por aí. Não bastasse assacar materialmente contra a liberdade sindical, o governo lançou mão de medida provisória para fazê-lo.
Diz a Constituição, em seu artigo 62, que a medida provisória é instrumento normativo, à disposição do Presidente da República, para uso em casos de urgência e relevância.
Mas qual a urgência e relevância de regular este assunto, de regular a relação do sindicato com seus filiados por medida provisória?
Será que algum sindicato estava com a existência ameaçada? Haveria desordem no país fruto da ausência dessa normativa? Urgente para quem e relevante para quê a edição da MP 873?
Essa pergunta não tem resposta na racionalidade jurídica e também por isso a MP 873 se faz inconstitucional.
0 artigo 545 da CLT, desde 1969 (vale dizer, há 50 anos) previa o desconto em folha de pagamento como forma possível de pagamento da contribuição sindical, na medida em que obrigava aos empregadores, no caso de notificação dos sindicatos e autorização dos empregados, a ultimarem os descontos. Evidentemente esse dispositivo moldou a maneira preferencial de recolhimento da contribuição sindical de inúmeros sindicatos.
Este dispositivo, é importante pontuar, não estabelecia forma compulsória para o recolhimento de contribuição sindical (porque isso seria, como de fato é, teratológico). Esta era normativa destinada ao empregador, pois lhe impunha a obrigação de processar o desconto da contribuição sindical em folha de pagamento, caso houvesse interesse expresso do sindicato e do empregado emitido nesse sentido. Não havia impedimento, entretanto, para o Sindicato conduzir de forma diversa a gestão da respectiva entidade.
A MP 873, maliciosa e propositadamente confunde, ao misturar contribuição sindical com imposto sindical, e inova regressivamente ao vestir camisa de força nos sindicatos, obrigando-os, do dia pra noite, a abandonar prática cinquentenária do desconto em folha e recolher suas contribuições por boleto físico ou virtual.
E tanto é fato que urdiu no sentido de misturar o que não se mistura, que ao regular abusivamente a forma de recolhimento e pagamento da contribuição voluntária, a MP 873 dispõe – na seção “Dos Direitos dos Exercentes de Atividades ou Profissões e os Sindicalizados”, artigo 545 da CLT – que “as contribuições facultativas (…) serão recolhidas, cobradas e pagas na forma do disposto nos art. 578 e art. 579”, exatamente os artigos de abertura da seção que cuida “Da Fixação e do Recolhimento do Imposto Sindical”.
Por fim, mas não menos importante, a Constituição, artigo 62, § 1º, I, “a”, veda edição de medida provisória sobre matéria relativa à cidadania. A cidadania, assim compreende a literatura jurídica, é conceito que abrange o conjunto dos direitos fundamentais, tanto os individuais, como os coletivos e sociais, entre os quais figura o direito à liberdade sindical, inscrito no artigo 8º de nossa Carta.
Daí que a medida provisória é instrumento legislativo inidôneo para regular matéria afeta à liberdade sindical. Está o Presidente da República proibido de lançar mão de medida provisória para regular esta ou qualquer outro assunto referente a direito à cidadania, dentre outros expressamente elencados na Constituição.
A MP 873 não é apenas uma medida provisória que se afoga em atecnia ou inconsistência jurídica. É uma impostura, um escândalo, para não dizer uma rematada malandragem.
* Márcia Semer é presidente do SindiproesP, Procuradora do Estado de São Paulo, Mestre e doutoranda em Direito Público pela USP