A Prefeitura de São Paulo quer mudar a estrutura do atendimento ao SUS na cidade: quer aumentar o PSF, mudar a função de AMA e AME e melhorar UBS, deixar PSs e PAs mais eficientes e implantar UPAs. Nada foi dito sobre os contratos com OSs.
PQP, quem consegue entender essa sopa de letras? Imagine uma pessoa com mal-estar súbito na família, que precisa decidir para onde levar o pai, a mãe ou um dos filhos. Ela precisa de um tradutor de “burocratês médico” para saber o que fazer.
Até os anos 1980, as pessoas buscavam fundamentalmente postos de saúde, prontos-socorros ou hospitais. Essa simplicidade, no entanto, criava um problema: quem não padecia de um caso grave, na falta de opção, passava no pronto-socorro, que é estrutura cara, preparada para dar atendimento urgente a problemas importantes, acidentes, ataques cardíacos ou acidentes vasculares etc.
Mais de 8 em cada 10 pessoas que procuram atendimento têm problemas triviais, que podem ser resolvidos de forma rápida, com um remédio ou curativo. No pronto-socorro, congestionam as filas e atrasam o atendimento realmente emergencial.
Os constituintes de 1988 criaram o SUS, Sistema Unificado de Saúde, uma das revoluções positivas vividas pelo país, que a opinião pública talvez não tenha ainda reconhecido em sua radicalidade.
O SUS concebeu então duas formas de atendimento básico de saúde para evitar que o doente vá até o hospital: o PSF, Programa de Saúde da Família, cuja equipe vai às casas das pessoas no dia a dia; e uma rede de postos de saúde que deve estar a uma distância acessível das casas. Os burocratas da saúde, em vez de manterem o nome tradicional "postos de saúde", denominaram essa instância de UBS, Unidade Básica de Saúde. Uma boa ideia com nome ruim.
As UBSs têm equipes generalistas: clínico geral, ginecologista, pediatra. Assim, um corte profundo, uma pequena emergência ortopédica, uma falta de ar, bronquite, enfim, coisas que demandam especialistas, mas não são tão graves, iam para os hospitais congestionando as suas emergências. Em época de surtos, então, a imprensa fazia a festa na porta dos hospitais.
Quando o ex-ministro da Saúde José Serra foi eleito prefeito de São Paulo, em 2004, recebeu do médico Claudio Lottenberg o projeto de uma unidade de atendimento rápido de pequenas emergências, para reduzir a demanda nos prontos socorros. Criada em 2005, essa unidade recebeu da burocracia médica o nome de UARS: Unidade de Apoio e Retaguarda em Saúde. Pode fazer todo sentido em burocratês, mas é indecifrável. Serra acabou trocando o nome por AMA (Atendimento Médico Ambulatorial) e implantou uma delas para cada quatro UBSs.
A unidade foi um sucesso: foi compreendida pelos usuários do SUS, atraiu os casos urgentes e desafogou hospitais de suas regiões. O sucesso foi tanto que potencializou a popularidade de Serra, que seria candidato a presidente em 2010. Por isso, o governo Lula decidiu criar uma marca semelhante. Lançou um modelo de AMAs financiadas pela União. E para não potencializar a marca do ex-prefeito paulistano, o ministério da Saúde deu às AMAs federais o nome de UPA.
Brasília paga todo o custo de implantação e, depois, cerca de 30% do custeio. A equação de grana contradiz a essência do SUS, que é a municipalização, mas no acirramento da disputa eleitoral, esse ponto não chamou atenção. Para garantir o impacto eleitoral para o esquema político governista, o ministério da Saúde impôs uma condição para o financiamento às novas unidades: elas têm que ter o nome UPA. Mesmo que o paulista conheça bem a AMA e corra para ela quando está com certo tipo de problemas, o governo federal não financia a implantação e nem reembolsa o atendimento nas unidades com esse nome.
Essa política antifederalista se manteve intacta depois da troca de governo de 2016. E agora, em 2018, a Prefeitura de São Paulo quer receber o dinheiro que Brasília manda para UPAs. É um direito da cidade e um dever de Brasília. Mas o governo federal só envia fundos para unidades chamadas UPAs. Com a redução dos custos com essas unidades de desempenho intermediário, a cidade vai investir no crescimento do número de equipes do PSF, o Programa de Saúde da Família, elogiado em todo o planeta.
Por isso, ao longo dos próximos meses, um imenso esforço de comunicação terá que ser feito para que a população da grande São Paulo se acostume com novos nomes e funções de unidades de saúde. Mas a divulgação já começou errada: a prefeitura fechou algumas unidades e imediatamente o Ministério Público chamou o secretário de Saúde e o prefeito para depor. A notícia de que AMAs serão fechadas sofreu críticas duras tanto dos usuários quanto de tucanos como José Serra e da oposição petista na Câmara Municipal. Só então a prefeitura começou a explicar, inclusive que as mudanças ainda estão sendo projetadas e nada têm a ver com fechamentos em curso.
O jogo começou com o pé esquerdo. Talvez a primeira medida seja mostrar com clareza o que é cada unidade, o que vai mudar só de nome e o que será alterado de fato.
A saúde atende cerca de 6 milhões de pessoas na cidade (crescimento aproximado de 25% em 15 anos). Não é possível ter que conviver com essa indigestão por causa de uma sopa de letras que muda de nome no cardápio conforme o chef que a serve.
Foto: Ronny Santos/Folhapress