Elas nasceram no mesmo ano, têm a mesma profissão e o mesmo tempo de trabalho. Mas, se a reforma da Previdência proposta pelo governo passar sem alterações, Rosana Pereira pode ter que esperar três vezes mais que Paula Cintra para se aposentar.
As duas fazem parte de uma geração separada por um abismo criado pela proposta do governo, formada por mulheres nascidas em 1972 e homens de 1967, que chegarão neste ano aos 45 e aos 50, respectivamente.
Pela proposta enviada ao Congresso pelo presidente Michel Temer, quem estiver abaixo dessas idades na data em que as mudanças na Constituição forem promulgadas só poderá se aposentar ao completar 65 anos de idade e somar 25 de contribuição.
As exigências valerão para homens e mulheres, trabalhadores rurais e urbanos, do setor privado e do serviço público, sem distinção de profissão.
Acima dessa faixa etária, trabalhadores do setor privado entrarão numa regra de transição e poderão se aposentar antes de atingir a idade mínima se completarem o tempo de contribuição exigido hoje e pagarem um pedágio, contribuindo por mais 50% do tempo que faltar.
É o caso de Paula, que fez aniversário em janeiro e teria direito à transição. Professora há 22 anos, se aposentaria com mais 3 de contribuição e 1,5 de pedágio, perto dos 50.
Rosana, contudo, só faz 45 anos em outubro. Se a reforma passar antes disso, terá que esperar mais 20 anos para atingir a idade mínima.
Em 359 simulações feitas pela Folha com 149 combinações possíveis de idades e tempo de contribuição, professores para o setor privado estão em dois terços dos casos cuja espera para se aposentar ultrapassa os 15 anos.
Na sexta (31), professores de colégios paulistanos foram às ruas protestar contra a reforma. Alguns de roupas pretas, indicando com fita adesiva as idades em que julgam que será possível parar de trabalhar com as novas regras.
O impacto da proposta do governo será maior para os professores porque são eles os que têm condições mais favoráveis pela legislação atual.
Pelo mesmo motivo, mulheres são maioria nos grupos que terão espera mais longa. Nos casos em que a espera supera 15 anos, 73% envolvem trabalhadoras.
O efeito da transição é menor para trabalhadores que já têm mais dificuldade para se aposentar hoje, como a copeira Elisangela Valucas, 31. Ela só tem dois anos de registro em carteira. Sem a reforma, precisaria esperar ao menos mais 28 anos. Com as novas regras, levará mais 34.
"A idade mínima vai atingir principalmente o trabalhador de classe média. Não é uma questão para os mais pobres, que hoje já se aposentam por idade", diz o advogado Fabio Zambitte, 46, especialista em direito previdenciário.
A advogada Adriane Bramante, também especialista em direito previdenciário, ressalta que os trabalhadores precisarão pesar a melhor opção depois que a reforma for concluída.
Há pessoas, por exemplo, que podem se aposentar por idade dentro das regras de transição, em menos tempo e com menos contribuição. Mas isso implica benefício menor para os que ganham mais que o salário mínimo.
"É importante analisar caso a caso e ver qual atende melhor às necessidades de cada um."
Também é o caso de servidores com regime próprio de Previdência, que já cumprem idade mínima. Uma professora da rede pública precisa chegar aos 50 anos para se aposentar pelas regras atuais.
Para funcionários públicos, o maior prejuízo será nos vencimentos, principalmente para os que começaram a trabalhar antes de 1998.
O auditor da Receita Weber Allak, 46, por exemplo, começou nas Forças Armadas, tem 32 anos de serviço público e já passou por duas regras de transição. Pela que está em vigor, pode se aposentar em 9 anos, com salário integral.
Como fica fora da nova regra de transição, pode acabar com parcela muito menor. A proposta do governo é que todo aposentado ganhe no máximo o teto da Previdência, que hoje é de R$ 5.531,31. Colegas de Allak que já têm 50 anos terão direito a ganhar aposentadorias equivalentes a cerca de três vezes a sua.
"Mudar as regras no meio do jogo é viável. Não se trata de futebol. Mas a regra transitória precisa preservar melhor a expectativa de direito. É uma mudança de regime jurídico, e ela precisa ser razoável com as pessoas que confiaram no Estado", afirma o advogado Fabio Zambitte.
A regra abrupta, segundo o secretário da Previdência, Marcelo Caetano, tem como objetivo demarcar um período claro de transição: "Em 20 anos, a gente deixa para trás as regras atuais e passa a funcionar com as novas".
Ela é importante também para combater o efeito de uma população que envelhece rapidamente, o que exige uma transição mais curta, diz o economista Pedro Castanheira Schneider, do banco Itaú BBA.
Mas o abismo criado pela regra de transição virou alvo de parlamentares: é o tema mais abordado nas emendas que sugerem alterações à proposta de reforma do governo.
Das 130 emendas válidas, 23 sugerem novas regras de transição. "Como disse o próprio relator da reforma, regra de transição ficou como escalação de futebol, cada um tem a sua", brinca Schneider.
O problema é que a regra de transição é o mecanismo da reforma com maior potencial de gerar economia para o governo. Segundo cálculos de Schneider, conta-se com ele para obter 63% da redução de despesa esperada com a reforma, equivalente a 1,6% do PIB (Produto Interno Bruto) em em 2025.
Emendas apresentadas na Câmara dos Deputados e avaliadas por Schneider teriam impacto menor, de 0,7% ou de apenas 0,3% do PIB.
Para o economista Fabio Giambiabi, o ideal seria conter ainda mais drasticamente as despesas, barrando aposentadorias precoces.
Ele propõe idade mínima de 60 anos já, para todos, com elevações futuras progressivas.
"É fundamental queo teto de gastos seja respeitado nos próximos cinco anos. Se as pessoas continuam a se aposentar muito cedo, será preciso cortar serviços importantes."
Não está claro, porém, se há espaço político para enrijecer ainda mais as regras de transição, diz ele. "A batalha principal é manter o coração da reforma, sem desvirtuar nenhuma das principais regras."
Nos cálculos de Schneider, a economia obtida com a proposta de Giambiagi seria, em 2025, semelhante à da transição proposta por Temer: 1% do PIB.
Mas essa estratégia de idade mínima progressiva impõe sacrifícios maiores a quem está mais perto de se aposentar.
Schneider calculou o efeito de uma opção alternativa: estabelecer para todos um pedágio de 50% do tempo de contribuição faltante e elevar esse pedágio em dez pontos percentuais a cada três anos.
Ou seja, quem hoje precisa contribuir mais 3 anos pagaria um pedágio de 1,5 ano (50% de 3). Quem precisa contribuir mais 6 anos pagaria pedágio de 3,6 (60% de 6) e quem precisa contribuir mais 9 pagaria pedágio de 6,3 (70% de 9).
Essa fórmula em escada traria uma economia de 0,8% do PIB em 2025, segundo o economista do Itaú BBA.
Enquanto esperam a decisão final sobre a reforma, professores já começam a rever seus planos para o futuro.
Julio Fetter, 30, que tem 9 anos de contribuição e dá aulas de educação física em duas escolas, diz que ele e sua mulher, fisioterapeuta no serviço público, já começaram a estudar a possibilidade de fazer uma previdência privada.
Pai de uma criança de dois anos, ele se preocupa com o tempo que precisará esperar a mais antes da aposentadoria.
"Dar aula é um desgaste grande. É preciso estar atento o tempo todo, força a voz, há esforço físico. Não sei como será se tiver que trabalhar até muito mais tarde", comenta.
Fonte: Folha de S.Paulo