"Educação é importante, mas saúde é urgente", diz a dona de casa Fabiana Freires, 29, paciente do SUS que espera há sete meses para descobrir o que é um nódulo na garganta e não encontra nem analgésico no posto de saúde.
Casos como o dela ajudam a explicar como a saúde virou a maior preocupação dos eleitores paulistanos -38% dizem ser o principal problema da cidade, segundo o Datafolha.
O gargalo se estende no resto do Brasil -52% reprovam ações das prefeituras na área. Falta de remédios, planos caros e ineficientes e longas esperas são parte da explicação.
Na capital paulista, a prefeitura contabiliza 753.811 pessoas na fila de espera por cirurgias, consultas e exames. A demora média para ser consultado com especialistas chega a cinco meses.
O problema não se restringe à rede municipal. A garçonete Izilana Souza, 32, procurou o Conjunto Hospitalar do Mandaqui, estadual, com problema na tireoide e dois caroços que ninguém sabe dizer o que são. O papel que recebeu aponta a data da consulta médica -12 de janeiro de 2017. Para não enfrentar cinco meses de fila, decidiu pagar pelo exame de tireoide.
Essa situação -de pacientes do SUS que acabam tendo que pagar o tratamento- é agravada em meio à crise econômica. Desde 2014, 1,9 milhão de pessoas perderam plano de saúde no país. E mesmo quem pode pagar não tem alívio -porque os problemas incluem tanto as redes pública quanto privada. No primeiro semestre, clínicas particulares tiveram filas de horas devido à procura pela vacina contra a gripe H1N1.
Em 2015, 744 mil clientes da Unimed Paulistana também passaram por apuros quando a operadora foi obrigada a repassar seus pacientes a outros planos pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). O órgão avaliou que a operadora, em crise, não garantiria suas obrigações.
Agora, um novo problema: o aumento abusivo de preços. "Nos últimos três meses, cresceu muito o número de demandas relacionadas ao reajuste de planos coletivos [maior parte do mercado], independente da faixa etária", diz o advogado Rafael Robba, do escritório Vilhena Silva, um dos maiores do setor.
Segundo ele, o reajuste costumava ficar entre 12% e 15%, mas em alguns planos chegou a até 30% neste ano. "Diante da falta de transparência das operadoras e do cenário econômico, não se descarta que seja um mecanismo para elas recomporem a receita perdida", diz.
GESTÃO
"Há um setor privado que não entrega o que promete e um público subfinanciado e com problemas de organização", diz Mário Scheffer, professor da Medicina da USP.
O nó de gestão fica evidente na dificuldade de resolução das queixas dos pacientes no atendimento primário.
O caso de Fabiana Freires, moradora do Capão Redondo (zona sul), é exemplar. Desde fevereiro, quando notou um nódulo no pescoço, conta já ter passado por cinco unidades da rede municipal para procurar a causa do problema. Nesta sexta (9), descobriu que é benigno.
Já a babá e doméstica Antonia das Mercês Oliveira Valfrido, 60, ainda enfrenta a angústia da espera. Ela afirma que, há oito meses, desde que procurou o Conjunto Hospitalar do Mandaqui, espera por uma cirurgia na vesícula.
Pagou R$ 120 por exame na rede particular. Na terça (6), foi ao pronto-socorro do Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha com crise de dor. O médico reiterou que ela tem que fazer cirurgia. "Talvez me chamem para fazer a cirurgia depois que eu morrer", diz.
ANGÚSTIA NA FILA
Uma reclamação de Elaine Paiva Rezende, 29, levou o Ministério Público de São Paulo a abrir investigação para apurar a falta de medicamentos nas redes públicas de saúde tanto do Estado quanto da capital, principais gargalos da saúde no país.
Aos dez meses de idade, Elaine sofreu um atropelamento. É cadeirante e tem bexiga neurogênica (perda da função normal do órgão devido a uma lesão no sistema nervoso). Em 2014, ela começou a pegar sondas urinárias na UBS Vila Pirituba, que é municipal. Mas a irregularidade na entrega do material a fez procurar o Ministério Público.
"Sempre diziam que o material [sonda] estava em falta", afirma. Em agosto, recebeu 120 sondas nº 8 -ela precisa de 160 nº 10. "Disseram: 'Por sorte temos as sondas porque um idoso faleceu'."
Quando tem que pagar do próprio bolso, desembolsa R$ 1,20 por unidade. "Minha terapeuta ocupacional passou uma prescrição de uma cadeira importada. Não dá nem para imaginar comprar uma coisa dessas", diz ela.
É questão de sobrevivência para Sonia Silva Gonçalves Leal, 56, que teve câncer de mama em 2011. Neste ano, descobriu metástase no pulmão. Em março, diz ela, foi ao hospital Pérola Byington, estadual, e recebeu a indicação do medicamento Herceptin. Espera até hoje.
Sem o remédio, tem que tomar quimioterapia por via oral, com efeitos colaterais. "Tenho enjoo e diarreia, perdi parte do tato da mão e estou com parte da pele preta", diz. "É angustiante. Dependemos disso para sobreviver."
Em maio, o Ministério Público Estadual visitou cinco unidades básicas de saúde das mais de 600 da rede municipal, e um Ambulatório Médico de Especialidades (AME), da rede estadual.
A fiscalização aponta pouca transparência e eficiência na gestão do estoque, atrasos de fornecedores na entrega e e demora na compra de remédios que estão em falta.
No AME Maria Zélia, no Belenzinho (zona leste), estavam em falta 54, ou 24%, de 227 medicamentos na lista de remédios teoricamente disponibilizados pelo Estado.
Já as UBS, segundo o relatório da Promotoria, passam por largos períodos de desabastecimento de remédios básicos. Em três das unidades, faltava remédio contra verminose. Também não havia medicamentos como dipirona e paracetamol.
Para Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e secretário municipal de Saúde de São Paulo em 2003 e 2004, o problema denota "falta de gestão". Ele defende um modelo como o de alguns países europeus, que utilizam farmácias privadas para distribuir remédios. E critica a falta de integração das redes do Estado e do município, "que não conversam".
Mas, para ele, o grande gargalo, "fora a questão do financiamento", é a demora causada pelas regras de licitação. O médico João Ladislau Rosa, conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), concorda.
"Abre-se uma concorrência, que já é demorada, o menor preço ganha e o segundo menor preço entra na Justiça. A rede fica meses e meses sem abastecimento", afirma.
OUTRO LADO
Procuradas pela reportagem, as secretarias estadual e municipal de Saúde responderam as queixas aos seus serviços com justificativas que vão desde falhas de empresa licitada para o serviço à negação dos relatos feitos pelos pacientes.
Sobre o caso de Fabiana Freires, a gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) diz que ela passou por consulta em 29 de junho, quando foi solicitada ultrassonografia. O exame foi feito na sexta (9).
Segundo a prefeitura, o analgésico ibuprofeno estava disponível tanto na AMA como na UBS do Capão Redondo -embora na terça-feira (6) a reportagem tenha presenciado a negativa da funcionária da UBS. A AMA também tem o corticoide receitado, disse a secretaria.
Sobre a falta de medicamentos nas UBS, a prefeitura diz que, de julho a agosto, houve uma melhoria de 28,5% no abastecimento de unidades monitoradas pelo Ministério Público Estadual.
Segundo a pasta, "30% dos casos de faltas de medicamentos estão relacionados aos atrasos pelos fornecedores". Desde maio, afirma, a secretaria publica em seu site entregas que não cumpriram o contrato. A pasta cita o site e aplicativo "Aqui tem Remédio" como opção para consultar a disponibilidade de medicamentos na rede.
A gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB) diz que "não procedem" as queixas ao atendimento pelo Conjunto Hospitalar do Mandaqui.
Segundo a secretaria estadual, Antonia Valfrido esteve internada em março e recebeu diagnóstico de pedra na vesícula, mas não foi indicada cirurgia. "A paciente segue sob acompanhamento ambulatorial com cirurgião."
Sobre Izilana Veiga Souza, diz que sua última passagem na unidade ocorreu em 24 de novembro de 2015, no pronto-socorro, quando ela relatou palpitação. "Não consta nenhuma pendência relacionada a agendamentos."
Em relação ao caso de Sônia Leal, que espera um medicamento para seu tratamento de câncer, diz que já foi enviado telegrama a ela com orientações sobre a retirada do remédio.
A secretaria estadual da Saúde diz ainda que não procede a informação sobre desabastecimento de 23% dos estoques da farmácia do AME e que discorda do cálculo usado pela Promotoria.
Segundo a pasta, a farmácia "deve dispor só dos itens em que há demandas de pacientes previamente cadastrados no programa de medicamentos de Alto Custo", e não de todos os medicamentos.
A pasta cita "aumentos inesperados de demanda, pregões que 'fracassam', falta de matéria prima dos fabricantes, atrasos por parte de fornecedores, atrasos do Ministério da Saúde", entre outros, como causas para a difícil aquisição de remédios.
Em relação ao aumento dos planos de saúde, a Associação Brasileira de Planos de Saúde diz que, "quanto mais beneficiários, mais barato fica o produto".
A entidade afirma que a inflação dos serviços médico-hospitalares em 2015 foi de 19,3%. A Federação Nacional de Saúde Suplementar diz que o reajuste dos planos coletivos é de livre negociação entre as partes "com o objetivo de preservar o equilíbrio técnico financeiro do contrato".