Para a pedagoga Ena de Araújo Galvão, diretora da Etesb, trabalhadores técnicos em saúde não são valorizados. "Há os que pensam e os que executam", diz.
Os profissionais de nível técnico na área da saúde são de fundamental importância para o SUS. No entanto, eles sofrem com um processo de invisibilidade, ora como resultado de um modelo centrado na figura do profissional médico, ora pela própria divisão social do trabalho em saúde, marcado pela fragmentação no processo de cuidar e pela separação entre concepção e execução. A observação é da pedagoga Ena de Araújo Galvão, diretora da Escola Técnica de Saúde de Brasília (Etesb). Nesta entrevista à revista RET-SUS, ela analisa o tema da invisibilidade dos profissionais técnicos em saúde, a partir de suas raízes históricas.
Ena é especialista em educação tecnológica e mestre em Ciências da Saúde. Em 2004, recebeu o Prêmio Gente que faz saúde, concedido pela Organização Pan-Americana da Saúde. Participou com um grupo de especialistas liderados pela enfermeira sanitarista Izabel dos Santos da elaboração e execução de momentos importantes da educação profissional na saúde, tais como o Projeto Larga Escala, na década de 1980, visando à formação profissional dos trabalhadores de nível médio e fundamental inseridos nos serviços de saúde e viabilizando a criação de escolas e centros formadores do SUS, o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae), na década de 1990, com vistas à melhoria da qualidade da atenção à saúde, por meio da redução do déficit de pessoal dos auxiliares em enfermagem qualificado e do apoio e fortalecimento das instâncias de formação e desenvolvimento dos trabalhadores do SUS, e o Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), instituído em 2009, tendo como meta qualificar ou habilitar 745.435 trabalhadores em cursos de educação profissional para o setor saúde, já inseridos ou a serem inseridos no SUS, no período de oito anos. “Para os profissionais técnicos, resta a cultura dos procedimentos, muitas vezes acrítica e repetitiva. A organização do trabalho é fortemente influenciada por uma cultura de supervisão verticalizada, onde prevalecem os que “mandam”, cabendo ao profissional técnico obedecer normas e regras”, destaca.
A invisibilidade dos profissionais técnicos da Saúde é real?
É real. Em minha opinião, essa invisibilidade reside, em primeiro lugar, na história da educação. Sem pretender esgotar o tema da qualificação profissional e suas diferentes nuances e interpretações dentro da legislação de ensino, podemos citar três períodos em que a legislação de ensino reforça diferenças de forma e de conteúdo em relação aos profissionais técnicos e os demais. O primeiro inicia-se com o ensino dos ofícios, criado pelo Decreto nº 7.566/1909. O regulamento pretendeu ajudar as classes proletárias a vencer as dificuldades da luta pela existência e fazê-las adquirir hábitos de trabalho profícuo, favorecendo seu afastamento da ociosidade, da escola do vício e do crime. A política já nasce segregando. O segundo período vai da Proclamação da República até os anos 1960 e traz transformações substanciais no campo da qualificação profissional. Aparecem as escolas patrocinadas pelos governos federal e estaduais, pela Igreja Católica e por trabalhadores organizados em associações ou sindicatos. O aprendizado profissional foi sendo substituído por um ensino mais genérico, decorrente do processo de industrialização do país. Aqui surgem os serviços e as escolas da Rede S (Senai, Senac, Sesi etc.). A Lei Orgânica do Ensino Secundário (nº 4.244, de 9 de abril de 1942) valorizava o acadêmico, o propedêutico e o aristocrático, mantendo afastada a classe social mais pobre. Para estas classes, as leis orgânicas que regulavam o ensino profissional seriam capazes de dar conta das necessidades impostas e regulavam o horizonte do ensino profissional, pautado pelo mercado de trabalho. Mais uma vez, a natureza dualista do ensino ganha espaço: para os pobres a escola profissionalizante e para a classe média, a escola propedêutica [é um termo histórico originado do grego que significa referente ao ensino. Trata-se de um curso ou parte de um curso introdutório de disciplinas em artes, ciências, educação etc. É o que provém ensinamento preparatório ou introdutório, os chamados conhecimentos mínimos]. Durante muito tempo o atual Ensino Médio, antigo Secundário, ficou restrito àqueles que prosseguiriam seus estudos no nível superior. Enquanto que a educação profissional era voltada aos pobres e desvalidos. O terceiro período diz respeito à década de 1970, quando houve a promulgação da Lei nº 5.692, de 1971, que fixou as diretrizes para o ensino de 1º e 2º graus, até os tempos atuais. Naquela época, a sociedade brasileira vivia um momento de exceção com a tomada do poder pelos militares. A rápida urbanização exigia maior nível de escolaridade dos empregados. Era o período do milagre econômico (1968 a 1973), em que a formação profissional assumiu algum destaque, na medida em que precisava dar resposta às condições gerais da produção capitalista. A nova legislação de ensino aprovada manteve ainda o duplo aspecto para justificar a educação profissional: atender à demanda de técnico de nível médio para o mercado de trabalho e conter a pressão para a entrada no Ensino Superior. Finalmente, na década de 1990, foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, trazendo maiores possibilidades de avanços para a educação profissional.
Onde mais observamos esta invisibilidade?
Além dessa questão histórico-legal, vejo o aspecto cultural em que o trabalho e trabalhador técnico em saúde não são valorizados. Há os que pensam e os que executam, e os executores são exatamente os profissionais de nível médio. No campo da educação formal, as políticas sempre foram excludentes, cabendo aos trabalhadores técnicos cursos noturnos, de baixa qualidade, com metodologias e material didático inadequados para a educação de adultos. Não há foco nas experiências de trabalho desses profissionais já inseridos no mercado, seja ele formal ou informal.
Como essa invisibilidade se manifesta na organização do trabalho dentro do SUS?
No caso do SUS, há forte predominância do modelo centrado na doença, no hospital, no individual, sendo requeridos os profissionais de nível superior que têm melhores condições de resolubilidade, até porque estão no comando, gerindo os processos de trabalho dos profissionais de nível médio. Para os profissionais técnicos, resta a cultura dos procedimentos, muitas vezes acrítica e repetitiva. A organização do trabalho é fortemente influenciada por uma cultura de supervisão verticalizada, onde prevalecem os que “mandam”, cabendo ao profissional técnico obedecer normas e regras. A questão do gênero colabora também com essa invisibilidade, principalmente em algumas categorias profissionais.
A falta de identidade profissional das diversas categorias de profissionais técnicos na área da Saúde influencia a questão da invisibilidade?
No meu entender ainda há dificuldade, por parte das famílias e dos conselhos profissionais, em aceitar e reconhecer o trabalho do pessoal de nível médio. Isso se repete nos serviços de saúde onde a regulação é bastante presente, deixando para esse pessoal a responsabilidade da execução de tarefas “supervisionadas” e que na verdade não as são.
Quais seriam os caminhos para superar o problema da invisibilidade?
Vejo como possibilidades o estabelecimento de políticas que levem a decisões colegiadas, trabalho em equipe e valorização dos servidores, tanto no que diz respeito aos salários quanto aos processos de educação permanente, o planejamento participativo, a autonomia e a responsabilização das tarefas a eles confiadas, além de um processo de avaliação dos serviços e trabalhadores, redundando em motivação financeira e de mérito.
Como a formação profissional e o trabalho em rede podem contribuir para mudar essa realidade?
Hoje, as redes têm um papel fundamental nas mudanças, nas mobilizações e na participação social. O trabalho em rede permite visualizar a construção coletiva, ao mesmo tempo que o ator se vê empoderado e contemplado como parte inerente dessa construção.
Qual a importância de se discutir o tema da invisibilidade profissional com os próprios trabalhadores técnicos?
É um longo caminho a seguir, pela própria cultura brasileira, onde a fragmentação do trabalho é evidente. Os profissionais de nível médio tendem a reproduzir a cultura institucional da desvalorização que sofreram e sofrem nos serviços. Diálogo, responsabilização e pactuação podem ajudá-los a sair de grupos, transformando-os em equipes. A promoção de debates sobre processo de trabalho e importância de cada integrante na consecução dos objetivos institucionais pode também dar visibilidade ao trabalhador técnico. Por fim, observo que precisamos falar sobre as novas tecnologias que têm sido incorporadas e sobre o cuidado, não como algo filantrópico, mas como ato que exige mais que um saber fazer, e sim um saber ser.